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Giorgio De Marchis entrevista António Manuel Pires Cabral

Intervista in italiano

Poderia ajudar o leitor a orientar-se no Nordeste, como espaço geográfico e poético, tão presente nos seus versos?

Antes de mais, talvez valha a pena situar-nos geograficamente, antes de nos situarmos poeticamente. O Nordeste — outra maneira de designar a província de Trás-os-Montes, cujo nome é, por si só, significativo — fica no extremo norte interior de Portugal. É uma região desde sempre isolada por acidentes geográficos difíceis de ultrapassar: a grande Serra do Marão a oeste, o grande Rio Douro a sul. (A norte e a leste, não são acidentes geográficos, mas políticos, que a isolam: a fronteira com a Espanha.) Repare: a Serra do Marão é a segunda maior serra portuguesa. O rio Douro é o segundo maior rio português. Sempre nos coube o segundo lugar. Esta condição secundária tinha de ter consequências humanas. E teve: o Nordeste foi preterido (colocado em segundo lugar) ao longo de séculos pelos que têm governado o país, que o viam quase como um tumor indesejável que não é conveniente ou prudente extirpar e com o qual se tem de conviver — mas quanto mais longe melhor. Em consequência disso, o Nordeste concentrou-se em si mesmo e gerou uma cultura própria.

É desse Nordeste que falo nos meus versos: uma região esquecida, pobre, deprimida, mas, por outro lado, surpreendentemente autónoma na sua quase orgulhosa assunção da diferença. E — respondendo agora directamente à pergunta — claro que eu podia ajudar o Leitor a orientar-se no Nordeste enquanto espaço geográfico e poético. Podia, mas não é isso que pretendo ao fazer dele um dos objectos principais da minha poesia. Digamos que tenho objectivos mais egoístas do que o de ser um cicerone do Nordeste. Mais do que dar a conhecê-lo, pretendo robustecer o meu amor pelo Nordeste. Contemplá-lo para melhor o compreender e mais fundo me entranhar nas misteriosas raízes da sua identidade. Descobrir o lugar que ocupam no seu tabuleiro de xadrez as pessoas, os lugares, os animais e as plantas, os usos e as tradições, tudo, enfim. Os meus versos são, mais do que um espelho, uma enxada.

Claro que, ao aceitar editar os meus versos, não posso evitar que as pessoas que me lêem vão traçando um mapa mental do Nordeste. Digamos que é um efeito colateral — um efeito colateral bem-vindo.

«Mas sei de lugares onde há pedras / que conversam comigo». A natureza (animais, flores, rios) em muitos dos seus poemas surgem como interlocutores privilegiados mas parecem falar desde um outro tempo, um tempo longínquo.

Esses versos estão no livro Arado — titulo que não é casual nem inocente. Depois do livro de estreia, Algures a Nordeste (título que também não é casual nem inocente), Arado é provavelmente aquele em que tenho cavado mais fundo as minhas raízes. Esses dois versos dizem tudo da minha relação com o Nordeste — uma relação de intimidade, quase identificação. Repare: não digo “pedras que falam comigo”, que seria mais expectável, mas também mais convencional e mais cabotino. Digo “pedras que conversam comigo”, o que implica convivência e familiaridade. Como se o Nordeste (as “pedras”) e eu fôssemos dois velhos camaradas em diálogo permanente.

As “pedras” são, em primeiro plano, uma metáfora da rudeza do Nordeste. Mas são igualmente uma metáfora do todo e de cada uma das partes do Nordeste. Qualquer dessas partes pode ser convocada num poema — e tenho convocado dúzias delas. Mas essa convocatória, concedo, está de facto muitas vezes inquinada pela percepção que tenho do Nordeste como um mundo em risco de desertificação. Talvez mais do que desertificação: desintegração. E, ao mesmo tempo, aproprio-me poeticamente dessas partes desejando subconscientemente que o simples facto de as nomear equivalha a retardar o seu aniquilamento. É como se, nomeando-as, as perpetuasse.

Bem entendido, isto é uma ingenuidade de poeta: acreditar no valor encantatório das palavras que escreve.

Que significa para si, como poeta, o meio ambiente?

O que é o meio ambiente? Consulto um dicionário e leio: meio ambiente é «o conjunto das condições biológicas, físicas e químicas nas quais os seres vivos se desenvolvem». Isto corresponde ao ponto de vista do homem comum. Para encarar e reflectir sobre a complexa problemática do ambiente não é preciso ser-se poeta.

Subindo um degrau, não posso fugir a acrescentar a esta definição básica a consideração de que o meio ambiente não é algo que possa ser dado por garantido ad aeternum, mas sim algo que tem de ser respeitado e protegido, mesmo contra vontade dos que detêm o poder de decidir sobre a vida e a morte à superfície da Terra.

Também esta consideração não é exclusiva dos poetas, mas sim comum a quem quer que tenha desenvolvido uma consciência, digamos, ecológica. Acabamos por ver o meio-ambiente como um organismo vivo que está a ser acossado de todos os lados e se abeira da morte face ao desprezo e aos abusos a que tem sido sujeito crescentemente. Não, não acredito que um poeta, por ser poeta, possa ter uma concepção especial do meio ambiente. Não tenho em relação a ele (pelo menos conscientemente) uma atitude didáctica nem apologética, nem me assumo como seu guardião. Sirvo-me dele como coisa susceptível de ser cantada, é tudo.

Julga que a poesia ambiental pode revestir um papel social?

Em princípio, tudo o que existe debaixo da rosa do sol cumpre uma função social. Mas convém relativizar. Não tenhamos grandes esperanças na poesia enquanto ferramenta de modificação social. Ela pode emocionar-nos, enraivecer-nos, amotinar-nos, até mesmo divertir-nos. Mas não esqueçamos que o palco da poesia é um reino de faz-de-conta. Vive num mundo paralelo ao chamado mundo real. Esses dois mundos são de algum modo mutuamente refractários, não convergem na prática e raramente a poesia terá tido influência decisiva nas grandes convulsões sociais. A revolução russa teria avançado da mesma maneira sem os incitamentos poéticos de Mayakovsky. Quando muito, a poesia pode constituir uma espécie de pano-de-fundo artístico, sobre o qual se recortam os grandes lances históricos. E toda a arte (a poesia incluída) acrescenta sempre algum prestígio aos objectos sobre que se debruça.

Pode acreditar-se que a poesia tende a influenciar o desenvolvimento da sociedade. Tende. O que não significa que o possa fazer efectivamente. Uma coisa são as intenções, outra coisa são os resultados. Mas também não vejo inconveniente em que nós, poetas, vivamos na ilusão de que temos uma palavra a dizer no devir histórico. E, no caso vertente, na salvação da biosfera.

 

L'autore

Giorgio De Marchis
Giorgio De Marchis
Docente di Letterature portoghese e brasiliana presso il Dipartimento di Lingue, Letterature e Culture Straniere dell’Università degli Studi Roma Tre. Nell’ambito delle sue ricerche ha privilegiato lo studio di autori, movimenti culturali e opere del XIX e del XX secolo. Ha pubblicato un volume sul romanzo d’appendice nel Portogallo finisecolare (E… Quem é o autor desse crime? Il romanzo d’appendice in Portogallo dall’Ultimatum alla Repubblica, Milano, 2009) ed edizioni critico-genetiche di poeti modernisti quali Mário de Sá-Carneiro (O Silêncio do dândi e a morte da esfinge, Lisboa, 2011 e José Régio. Ha organizzato antologie di scrittori brasiliani (Apocalisse. Alle origini della fantascienza latinoamericana, Roma, 2014) e lusofoni (Lusofonica. La nuova narrativa in lingua portoghese, Roma, 2006) e ha tradotto per diverse case editrici italiane scrittori angolani, brasiliani, mozambicani e portoghesi. Recentemente ha curato un volume che raccoglie le conferenze tenute in Italia da José Saramago (Lezioni italiane, Roma, 2022) e un volume di studi dedicato alla poesia di Agostinho Neto (Noi dell’Africa immensa. Nuove letture della poesia di Agostinho Neto, Roma, 2022).

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